Mobilização: Como seria 2020 se as ruas não tivessem gritado contra cortes na Educação?

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Daniel Cara* – Especial para o UOL

O Brasil se tornou um país imprevisível. E essa imprevisibilidade poderia ter tido consequências ainda piores se as manifestações de 2019 não tivessem imposto alguns freios a retrocessos ainda maiores nas políticas educacionais.

É preciso explicar os governos Temer e Bolsonaro por suas alianças. Temer presidiu o país graças ao apoio de forças ultraliberais e ultrarreacionárias, com predomínio político dos primeiros. É a mesma aliança que sustenta o atual governo, porém – no caso atual – a dominância política cabe ao ultrarreacionarismo.

Paulo Guedes e seus aliados não compreendem que não são as pessoas que devem servir à economia (é a economia que deve servir às pessoas).

Obedecem a uma lógica de pensamento econômico em que o Estado deve ser reduzido a qualquer custo, perdendo sua função estratégica e social. Não falam de educação, saúde, mais empregos, distribuição de renda ou de desenvolvimento econômico, que deve ser pautado na reindustrialização. Apenas se ocupam da dívida pública, das taxas de inflação e de outros indicadores de interesse do mercado financeiro — esfera em que são comercializados os títulos públicos do país.

Em poucas palavras, os ultraliberais se limitam a debater os problemas, sem apresentar soluções, em uma equação em que a maioria esmagadora das pessoas não importa. Diante disso, se não ambicionam retomar a agenda do desenvolvimento, como ensinou o saudoso Celso Furtado, estão ainda menos dispostos a investir os recursos necessários para saldar a dívida do Estado brasileiro com a educação de seu povo.

Contudo, educação também é um investimento estratégico. Segundo estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), cada R$ 1 gasto com educação pública gera R$ 1,85 para o PIB (Produto Interno Bruto).

Já os ultrarreacionários atacam a educação para promover sua guerra cultural, trata-se de uma estratégia política.

Primeiro, posicionam alunos e famílias contra os professores com o “Escola ‘sem’ Partido”.

Ao mesmo tempo, buscam descredibilizar a escola como espaço público relevante com a “educação domiciliar”. Por último, com as escolas militarizadas ou “cívico-militares” tentam impor o autoritarismo às unidades escolares, desprezando o conhecimento científico da Educação – especialmente o pedagógico. E enfim, acusando de um esquerdismo inexistente, querem destruir os institutos federais de educação superior e básica, bem como todos os estabelecimentos públicos de excelência.

Abraham Weintraub, ministro da Educação, é a melhor síntese do governo Bolsonaro: ultrarreacionário ao extremo, ultraliberalismo sem qualquer freio — e sem contar com a reação do povo.

Reação das ruas
Ao apresentar um corte de 30% nas despesas discricionárias dos Institutos Federais, além do desmonte dos investimentos nacionais em Ciência e Tecnologia, o governo Bolsonaro gerou em 15 de maio de 2019 a maior mobilização da história do país em defesa da educação.

O chamado #15M foi espontâneo e teve como marca a demanda da população por um presente e um futuro dignos. As ruas ficaram apinhadas de estudantes, professores e pesquisadores, além de pais e mães de alunos. Por pressão, o governo Bolsonaro teve de recuar e, ao final do ano, reintegrou – com problemas – parte significativa dos recursos.

No evento “Democracia em colapso”, realizado em outubro, debati com Anielly Silva, Jones Manoel e Tory Oliveira o tema “Educação contra a barbárie”, título do livro para o qual colaboro com artigo, publicado pela Editora Boitempo. Diante da minha empolgação com os resultados do #15M e outras vitórias obtidas, Manoel recomendou que não nos apaixonemos pelas (pequenas, mas promissoras) conquistas.

Ele tem razão. Ocupar as ruas é necessário e, concretamente, resultou em um freio a Bolsonaro na educação – infelizmente, o mesmo não ocorreu com a Reforma da Previdência, por exemplo.

Na política é necessário demonstrar força. Porém, isso não basta. É imprescindível apresentar um projeto.

O #15M deu uma lição, que precisa ser continuada. As pessoas não se mobilizam apenas para resistir, elas precisam ter um norte. O mais sensato é retomarmos o espírito constitucional de 1988 e reinventarmos o desejo por um Estado de bem-estar social no Brasil, dedicado às pessoas e ao desenvolvimento sustentável.

Por sorte, contamos com as formulações do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova de 1932, de Florestan Fernandes e sua Campanha em Defesa da Educação Pública, com as elaborações do Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública e das contribuições recentes da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Na música “Sujeito de sorte”, Belchior disse “ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. A frase é tão forte que nomeia um querido bloco de carnaval paulistano.

Em “Passeio no mundo livre”, Chico Science afirmou “Um passo à frente e você não está mais no mesmo lugar”.

Em 2019, principalmente com o #15M, foi dado um passo: limitado, incompleto, mas efetivo. Em 2020 é hora de acelerar a caminhada em defesa do direito à educação e pela centralidade da Ciência e Tecnologia no desenvolvimento do Brasil. Essa deve ser a base para nossa democracia e para um outro país possível: próspero, justo socialmente e sustentável.

Graças às mobilizações das ruas em defesa da Educação, Ciência e Tecnologia realizadas em 2019, 2020 será um ano em que a resistência estará mais preparada. Contudo, não pode ser mais um ano dedicado a denunciar. Precisa ser também um ano de retomada do projeto educacional brasileiro.

*Daniel Cara, 42, coordenador-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, é doutor em educação e mestre em ciência política pela USP

(Portal UOL, 02/01/2020)