Março consolidou-se como o mês da mulher. Durante esse período, as pautas e lutas das mulheres ocupam espaço de destaque nas instituições governamentais e em ou-tros setores da sociedade. Para nós, mulheres, é mais que um mês festivo, é um es-paço para dar visibilidade às nossas demandas e estreitar o diálogo com a sociedade sobre os direitos das mulheres. Contudo, para que as questões de gênero sejam mais que um evento pontual, precisamos que os espaços de poder e privilégio sejam en-tendidos também como espaços de atuação das mulheres, pois, no percurso histórico do Brasil, o entrecruzamento entre raça, gênero e classe consolidou a esfera pública e o exercício do poder como atributos masculino e branco. Somos maioria da popu-lação, porém estamos sub-representadas nas esferas de poder, onde homens brancos e ricos mantêm o monopólio sobre a vida pública. Essa desproporção numérica da representatividade feminina tem consequências que implicam diretamente sobre nos-sos direitos, até o mais básico deles, o direito à vida – de acordo com a ONU Mulhe-res, a taxa de feminicídio no Brasil é a quinta maior do mundo.
A sub-representação política não significa que estamos ausentes nos espaços organi-zados de luta e militância. Luta é, por essência e definição, uma palavra feminina e a história do nosso país está repleta de mulheres que resistiram e continuam resistindo ao machismo e ao patriarcado. Estamos nos sindicatos, nas ONG’s, nas associações de bairros, nos partidos políticos, na liderança de espaços religiosos, entre outros. Nossa presença nesses espaços, ainda que a contrapelo, tem promovido uma abertu-ra ao debate de gênero e promovido transformações na sociedade, mesmo que a passos lentos. Embora a história do Brasil tenha estabelecido o movimento sufragista como marco da inserção das mulheres nos espaços políticos, a luta política das mu-lheres remonta aos tempos coloniais, quando mulheres negras libertas, livres ou em condição escrava lutaram lado a lado com homens negros sob as mesmas condições por liberdade. Portanto, sem desmerecer a importância do Oito de Março, precisa-mos pensar que mulher tem sua memória e vida celebradas nessa data. Falar em Mu-lher, no singular, não dá conta da diversidade sociorracial do país. Ao interseccio-narmos raça, classe e gênero visibilizamos mulheres negras e indígenas, grupos que não usufruem na mesma proporção dos avanços democráticos experimentados pelas mulheres brancas.
A análise interseccional não nos permite apenas entender as mulheres, em especial as mulheres negras e as mulheres indígenas, mas também entender e repensar a socie-dade como todo, nos permite ressignificar os papéis de gênero e desnaturalizar as desigualdades de raça e classe. As mulheres negras brasileiras experienciam a opres-são de gênero de forma diferente das mulheres brancas porque a raça aprofunda e intensifica a invisibilidade, a violência e a desproporcional representatividade das mulheres negras. A combinação das opressões implica na reprodução de desigualda-des econômicas, sociais e de oportunidades para nós, mulheres negras, posicionan-do-nos na base da pirâmide socioeconômica – recebemos menores salários e estamos sujeitas aos trabalhos mais precarizados, logo, lutamos para nos descolarmos dos espaços atribuídos a nós secularmente e, dessa forma, rompermos um ciclo de po-breza, cidadania limitada e violações de nossos corpos – ao contrário do que se ob-servou entre as mulheres brancas, o número de feminicídio entre as mulheres negras aumentou. Lutamos pelo fim do genocídio da população negra, lutamos por terra, contra a política de combate às drogas, contra o encarceramento da população ne-gra, contra o epistemicídio, contra a hipersexualização dos nossos corpos, contra a branquitude que nos fere e violenta emocionalmente, lutamos contra a solidão afeti-va; enfim, lutamos contra violências institucionais e estruturais.
A educação é uma ferramenta importante para superarmos as opressões de raça, gê-nero e classe porque muda a mentalidade e desnaturaliza violências, ela é o caminho para reflexão e problematização das estruturas de poder existentes em nossa socie-dade. Enquanto trabalhadoras em educação, temos o compromisso de lutar por uma educação pública de qualidade para as filhas e para os filhos das trabalhadoras e dos trabalhadores. Desse modo, defendemos uma educação contextualizada, que valorize a história das populações negra e indígena, que supere concepções machistas e hete-ronormativas, que seja contada a partir do nosso ponto de vista, que supere a colo-nialidade e proponha um outro modelo de sociedade. Precisamos de uma escola que preze pela multiplicação dos sujeitos e promova igualdade. Educar para a igualdade se faz fundamental nesse momento em que forças reacionárias tentam barrar o poder transformador da educação. Sabemos que o Golpe representa uma voz branca, mas-culina, neoliberal e esvaziadora das nossas pautas. Mais uma vez, a vida nos concla-ma às trincheiras para combater um governo opressor e lutar pela manutenção dos direitos conquistados, lutar contra a reforma trabalhista – que precariza com maior intensidade as trabalhadoras negras, lutar contra a redução da maioridade penal, lu-tar contra a reforma da previdência e os projetos de leis que legislam sobre os corpos femininos. Lutamos contra o desmonte do Estado Democrático de Direito. Nosso Es-tado foi golpeado por homens que estão criando leis antidemocráticas, todos os ter-ritórios estão em disputa, mas estamos em luta.
Mulheres Negras são sinônimo de organização e luta contra violências e opressões, vivemos em marcha pelo direito de existir. Sem o protagonismo da mulher negra não haverá autenticidade na luta pelos direitos das trabalhadoras e trabalhadores porque a classe trabalhadora brasileira tem cor, não dá pra pensar classe separada de raça no Brasil. A riqueza e distinção socioeconômica em nosso país é um legado do sistema escravocrata, quando a racialização estabeleceu os lugares e papéis sociais de bran-cos e negros. Dito de outra forma, a riqueza do Brasil é fruto da exploração do traba-lho negro, portanto, queremos igualdade de direito e oportunidades, queremos usu-fruir da riqueza que geramos há séculos. Logo raça e gênero não podem ser pensadas como setoriais de movimentos partidários, sindicais e demais movimentos sociais, essas categorias são nexos estruturantes da sociedade. Silenciar mulheres ou relegar a pauta a segundo plano, em especial as mulheres negras, é silenciar a voz da classe trabalhadora brasileira.
Ocupar espaços sem perspectiva de mudança não nos interessa. Queremos ocupar es-ses espaços para transgredi-los e transformá-los, queremos um outro modelo de so-ciedade; uma sociedade que não seja informada pela colonialidade, uma sociedade onde a cidadania não seja definida por raça, gênero e classe. Somos insubmissas, in-subordinadas e insurgentes porque nosso legado vem de mulheres que em rede se fi-zeram fortes e resistiram à desumanização, mantiveram-se persistentes e resistentes em seu sonho de liberdade, nossa luta é coletiva. Nossa marcha contra o pensamento colonial, a classe, o neoliberalismo, o racismo, o machismo e o patriarcado é irre-versível, não negociamos nossas pautas, nossos corpos, nossas lutas, nossas vidas. Seguiremos marchando por nosso sonho-projeto transgressor de liberdade até que todas e todos sejamos livres. Temos coragem de resistir e existir porque “nossos pas-sos vêm de longe.”
Lutemos e sonhemos todas!