Série Olhar Cidadão – Reportagem: Bruno Luiz Santos e Roberto Aguiar | Fotos: Joá Souza | Ag. A TARDE | Arte: Tulio Carapiá | Ag. A TARDE
A Escola Municipal de Quingoma fica dentro do quilombo do Quingoma, em Lauro de Freitas, na Região Metropolitana de Salvador. Mas ela pouco lembra uma unidade de ensino localizada em território quilombola. No dia a dia, quase os alunos não veem algo que possa os identificar com seu povo e sua história. Uma situação que se repete no estado, como mostramos na última reportagem desta série sobre educação.
Durante uma atividade em sala de aula, Marcelo de Oliveira, 12 anos de idade, desenhou uma mulher negra com um turbante colorido na cabeça. O menino colocou no papel uma imagem que faz parte do cotidiano da comunidade onde mora: o Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, cidade localizada na Região Metropolitana de Salvador.
Contudo, é pouco o que se vê do quilombo dentro da escola. Algo que contraria o artigo 8º do Plano Municipal de Educação (PME), aprovado em 2015 na gestão do ex-prefeito Márcio Paiva (PP). O dispositivo determina a elaboração de estratégias que levem em consideração as necessidades específicas da população das comunidades indígenas e quilombolas.
Este e outros artigos do PME nunca saíram do papel. Valdir Silva, presidente do Sindicato dos Trabalhadores em Educação da Rede Pública Municipal de Lauro de Freitas (Asprolf), aponta que a construção do plano não foi democrática e não teve participação da sociedade.
Apesar disso, a resolução nº 8 de 2012, do Conselho Nacional de Educação (CNE), estabelece que a organização e gestão das escolas quilombolas considerem o “direito de consulta e a participação da comunidade e suas lideranças”. O documento traça diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola na educação básica.
“O prefeito enviou o projeto direto para Câmara de Vereadores, onde foi aprovado de forma autoritária e antidemocrática. Até hoje estamos carentes de um plano que aponte perspectivas. Falta um norte, um caminho para educação em nosso município”, disse o presidente da Asprolf.
Mudanças
Cristina Kavalkievicz, coordenadora da Educação Básica de Lauro de Freitas, reconhece os problemas do plano de educação. De acordo com ela, o que foi aprovado em 2015 é uma mera cópia do Plano Estadual, com pequenas adaptações.
“Demos alguns passos, mas o acompanhamento foi fragilizado por não ser um plano elaborado por nós, não ter a cara do município e ser cheio de metas inalcançáveis”, enfatizou.
Enquanto a Secretaria Municipal de Educação (Semed) tenta corrigir o PME, os povos tradicionais seguem ausentes do processo de elaboração do currículo escolar, denuncia Ana Lúcia da Silva, conhecida como Dona Ana, uma das lideranças do Quilombo Quingoma.
“Nunca fomos convidados para pensar o planejamento escolar, o currículo pedagógico da Escola Municipal do Quingoma”, pontuou a líder quilombola.
Demandas
Em atividade há 29 anos, a Escola Comunitária Luísa Mahin, no bairro do Uruguai, em Salvador, é retrato da importância de se implementar práticas pedagógicas que levem em conta as especificidades da população negra.
Hoje como uma das coordenadoras da escola, Sônia Dias Ribeiro conviveu com as consequências de não ter estudado em um ambiente escolar com olhar para estas necessidades. “Todas nós que estamos gerindo a escola recebemos uma educação onde não fomos valorizadas. Um grupo de mulheres que toda a vida tiveram autoestima baixa, mulheres tímidas por causa do ambiente educativo em que vivemos”, relembrou.”
Incluímos a disciplina História Afrobrasileira e Indígena Cristina Kavalkievicz, coord. da Educação Básica
Na unidade de ensino, o projeto educacional é baseado em três pilares: questões de gênero, identidade e pertencimento. Ao contrário da escola no Quingoma, as referências às histórias do povo negro estão presentes nas salas de aula, que têm nomes de mulheres negras que lutaram contra a escravidão e em um varal com fantasias de reis e rainhas africanos.
Com mestrado em educação quilombola, Márcio Vila Flor afirmou que as políticas pedagógicas para esta população precisam levar em conta as diferenças entre elas. “Não tem um padrão de ser quilombola ou de ser negro no Brasil. As escolas podem pensar na especificidade de cada eixo, de cada contexto”, ressaltou.
Ainda segundo ele, é necessário melhorar também a formação dos professores no aspecto relacionado à população negra no país. “A formação do professor garante pouco espaço de discussão sobre a educação escolar quilombola e educação para as relações étnico-raciais. Ela deve ser discutida não só nas escolas quilombolas, mas em todas as escolas brasileiras”, destacou.
Medidas
De acordo com Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE – Censo 2010), 75,4% da população de Lauro é de origem afrodescendente. Um dado que não pode ser desprezado na elaboração de políticas públicas educacionais.
“Uma das medidas já adotadas foi a inclusão, neste ano, da disciplina Cultura e História Afrobrasileira e Indígena”, pontuou Cristina Kavalkievicz. A disciplina é ofertada para os alunos do 6º ao 9 ano do ensino fundamental.
A coordenadora também informou que já foi aprovado no Conselho Municipal de Educação (CME) a proposta de criação da primeira Escola Municipal de Educação Quilombola e Indígena Quingoma. Enquanto a escola não é construída, lacunas seguem abertas. Há dois meses como diretora da Escola Municipal de Quingoma, a pedagoga Vera Lopes opina que a falta de relação entre escola e comunidade precisa ser superada “pra ontem”.
Para ela, é preciso que a escola amplie o olhar sobre a comunidade. “Somos o único equipamento público dentro do quilombo. Aqui não tem transporte público regular, não tem uma Unidade Básica de Saúde. A maioria dos nossos alunos vivem em um contexto social de pobreza. Devemos muito a este povo, a escola não pode seguir assim, longe da comunidade”, frisou.”
Devemos muito. A escola não pode seguir longe da comunidade Vera Lopes, diretora de escola
Metas do Ideb são descumpridas nas escolas do município desde 2011
A falta de um plano estratégico consolidado e construído de forma participativa reflete nas baixas notas obtidas pelo município nas avaliações externas. Lauro de Freitas não atinge a meta do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) nos anos inicias (1º a 5º ano) desde 2011. Nos anos finais (6º a 9º ano), a meta não é obtida desde 2013.
Dados da QEdu, plataforma que reúne dados sobre educação no Brasil, revelam que na avaliação de 2017 do Ideb, apenas 7% dos estudantes do 9º ano aprenderam o adequado na competência de resolução de problemas matemáticos.
A plataforma também revela que 40% dos estudantes dos anos finais estão com atraso escolar de dois ou mais anos, o que gera uma distorção idade-série, prejudicando o fluxo escolar, um dos itens avaliados pelo Ideb.
Outro problema que influencia na qualidade do ensino é a falta de infraestrutura e equipamentos nas escolas. Dados da QEdu informam que apenas quatro escolas municipais têm laboratório de Ciências. A Escola Municipal Ana Lúcia Magalhães, que tem uma das maiores notas do Ideb (5,0), foi visitada pela reportagem. A unidade não dispõe de quadra esportiva, biblioteca e laboratório de informática. A mesma situação acontece na Escola Municipal de Quingoma.
Intervenções
Com o objetivo de melhorar os resultados para 2019, a Secretaria Municipal de Educação (Semed) elaborou o Programa de Melhoramento do IDEB de Lauro de Freitas (MIL). Segundo a coordenadora da Educação Básica Cristina Kavalkievicz, a etapa inicial do programa contou com um diagnóstico geral da situação educacional do município por escola. A etapa seguinte foi a aquisição de um livro paradidático da coleção Leio, Escrevo e Calculo (LEC) usada pelos professores em sala de aula. Gestores e docentes participaram de cursos de formação voltados ao trabalho com o material. A realização de simulados é outra ação realizada, para que os estudantes criem relação com o modelo de prova das avaliações externas.
Quanto à infraestrutura, a Semed informou que realiza licitações para manter as estruturas das escolas. Uma delas encontra-se na fase recursos, e irá contemplar seis unidades. Outro processo em trâmite, irá contemplar mais seis unidades.
41 – É o número de escolas quilombolas existentes na rede estadual de ensino da Bahia. Segundo a Secretaria de Educação do Estado (SEC), estas unidades possuem 4500 alunos matriculados.
30,3% – Esse é o número de escolas quilombolas do Brasil com material específico para este grupo étnico, segundo dados do Anuário Brasileiro da Educação Básica 2019.
258,6 mil – Esse é o número de matrículas registradas em escolas de áreas quilombolas em todo o Brasil em 2018, segundo dados do Censo Escolar.
Alunos reclamam da merenda escolar
Em Lauro de Freitas, a merenda não é preparada na escola, mas sim em uma central que faz a distribuição para todas as unidades da rede escolar. Estudantes e professores reclamaram da qualidade do alimento servido. “Iogurte com biscoito é a merenda campeã no cardápio”, protestou uma professora. Nos dois dias que a equipe de reportagem de A TARDE esteve visitando as escolas, iogurte e biscoito maizena foi o lanche distribuído aos alunos.
Valdir Silva, presidente da Asprolf, defende a descentralização da merenda escolar. “Há muitas reclamações, principalmente sobre a repetência do cardápio. A merenda deveria voltar a ser preparada na própria escola”, avaliou.
De acordo com a Lei n° 11.947/2009, que instituiu o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), é dever garantir uma alimentação saudável e adequada, que respeite a cultura, as tradições e os hábitos alimentares saudáveis, contribuindo para o crescimento e o desenvolvimento dos alunos e para a melhoria do rendimento escolar.
Pelo relato dos professores, a qualidade não está sendo garantida. “Comida mesmo, muito raro ser servida. Quando vem feijão, o acompanhamento é só carne e farinha, não tem o arroz”, relatou uma professora que pediu para não ser identificada.
Respostas
Questionada sobre as denúncias e reclamações de estudantes e professores, a Semed respondeu à reportagem de A TARDE por nota.
Quanto à qualidade, a secretaria afirma que toda a merenda é preparada, de acordo com um cardápio elaborado pela equipe de profissionais de nutrição, seguindo critérios necessários para assegurar refeições de qualidade. Os itens do cardápio compreendem biscoitos, sucos, iogurtes, frutas, legumes, entre outros alimentos que caracterizam uma boa refeição.
Pontuou que todas as refeições são preparadas no dia do consumo, pela manhã, e encaminhadas para as unidades educacionais a partir das 7h30, para o turno matutino, e a partir da 12h30 para o turno vespertino.
Sobre o processo de descentralização da preparação da merenda escolar, a Semed diz estar de acordo com a proposta do sindicato dos professores e que há um projeto para implantação de cozinhas em todas as unidades educacionais.
A nota cita que a Escola Municipal Gregório Pinto de Almeida e a Escola Municipal Pedro Paranhos, unidades que oferecem a modalidade de educação integral, já contam com a preparação da merenda escolar.
ESTAMOS DE OLHO
Lauro de FreitasEm dez reportagens, o especial “Olhar Cidadão” construiu um mosaico sobre a gestão da educação na Bahia. Ao longo da série, revelamos situações de transporte escolar precário e que coloca em risco diariamente a vida de alunos no sertão baiano. Mostramos os entraves que levam vários municípios a não conseguir avançar na qualidade de ensino rapidamente. Abordamos como as desigualdades sociais interferem no aprendizado de alunos e, como, ao mesmo tempo que pode reduzi-la, a educação – a falta dela, na verdade, serve para acentuá-las. E encerramos a série com esta reportagem, após passagens por Pilão Arcado, Candeias, Alagoinhas, Feira de Santana, São Francisco do Conde, Vitória da Conquista, Pojuca, Santo Antônio de Jesus, Simões Filho e Lauro. Mas o “Olhar Cidadão” segue, agora atento à área da saúde, tendo como próximos municípios a serem visitados Itabuna e Ilhéus .